quarta-feira, 23 de abril de 2008

Dos "Cadernos de Poesia": Sobre a Arte de Molhar os Pés


Também eu, de vez em quando, aprecio estar viva.
Ao pé do mar, apraz-me olhar de longe os sentimentos,
perguntando-me se são meus. Imaginando que
de fato me pertencem esses rastros de uma suposta
humanidade. Apraz-me constatar que o verão
não basta, que os seus restos me perseguem, fossilizados,
material de construção. Mas só pensar "isto me apraz"
já me derruba. Não era para haver uma distância?
A varanda deveria ter ancorado lá, nos dias de verão.
Era então possível vislumbrar os sentimentos ao longe,
boiando, à deriva - lambidos, desgastados, polidos
pelas ondas, engastados no verde móvel ululante,
pequenas jóias. Por obra e graça dos ventos,
esse tesouro ia então crestando ao sol, dourando
a espuma fria, servindo à vezes de pasto às fêmeas
de tubarão. Seu bem mais precioso era a chave
de um antigo poder - arrastar-me de novo às profundezas.
Lá, naquele abismo submarino, teu ossário resplandecia,
trêmulo de algas, sussurrando, à minha espera. Como antes.
Mas então me faltou o ar - defeito de fabricação -
e voltei mais cedo. Ou tarde demais. Agora me falta
o mar. Os sentimentos me machucam os pés
na areia dourada, olham-me de longe os restos de
um naufrágio. É hora de trabalhar. Apraz-me, serenamente,
esse ofício que um dia me escolheu.
Words by Lívia Soares
Painting by David Inshaw