quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": O Que Me Disse a Mandrágora





...defloramento, por exemplo, é uma palavra


linda. Convida a violar o lacre de uma flor


de carne. Uma vez aberta, a flor


simulará resistência ao avanço daquele


que pretende entrar. Mas nem tudo


será verdade. Quando o abismo chama,


há que contar com anedotas do destino,


ritos que se cumprem sem pergunta.


A flor de carne, pétalas se movendo


em círculos concêntricos por força do


instante - matrimônio de luz e trevas -


devolve o menino ao mundo.


"Pequena morte, pequeno monstro,


que poder nos traz aqui?" Isso


diria o menino, se pudesse. Não pode.


E, no entanto, move-se.


Words by Lívia Soares

Painting by Christopher Mir

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Diz Que Até Não É Um Mau Blog



Agradeço ao amigo Vieira Calado (http://vieiracalado-poesia.blogspot.com ) a delicadeza de me ofertar este prêmio. Aí vai o regulamento:
Eis os parâmetros inerentes à condição:
1. Este prêmio deve ser atribuído aos blogs que consideras serem bons, entende-se como bom os blogs que costumas visitar regularmente e onde deixas comentários.
2. Só e somente se recebeste o prêmio "Diz que até não é um mau blog", deves escrever um post :
- Indicando a pessoa que te deu o prêmio com um link para o respectivo blog;
- A tag do prêmio;
- As regras;
- E a indicação de outros 7 blogs para receberem o prêmio.
3. Deves exibir orgulhosamente a tag do prêmio no teu blog, de preferência com um link para o post em que falas dele.
Indico os seguintes blogs:




Dos "Cadernos de Poesia": Morpheus, uma Tradução


Não te deixes levar pelos


movimentos oculares rápidos, esse


manancial de fábula e engano.


Quanto do Sonhar não passa


de um delírio que deixa resíduos


nas pálpebras! E no entanto,


eu te digo: sou daqueles que


nasceram com a fronte marcada,


em mim o Sonhar esfumou as fronteiras


entre céus e terras, corpo e alma


e todos os reinos intersticiais.


Quando acordo, tenho marcas por


toda parte e nunca sei o quanto


de mim deixei na terra das sombras.


Tenho, por exemplo, nas pontas


dos dedos um gosto de auroras;


algumas estrelas tatuadas na


noite escura da alma; sardas


salpicadas pelas colinas num torso


a desmanchar-se de brancura;


a Via Láctea disposta e alojada


entre as costelas de um visitante;


a persistência de azuis aéreos


explodindo no céu da boca;


tempestades de areia traçando


arabescos e enigmas convidativos...


Talvez por isso, não ousei, nunca,


duvidar do monumento a que


chamei - a Vida Verdadeira. Assim


eu nos vejo quando sonho. Tu


estás comigo, não como "deverias",


não a estupidez de uma utopia.


Estás comigo inteiramente, com


todas as colunas do Templo restauradas,


com todos os Paraísos reconquistados,


bem visíveis os termos da equação.


E ao despertar, o monumento


se confirma na largueza dos céus,


nas pinceladas da aurora,


na gravidade dos ventos: somos nós.


Os corpos já tocados pelo outono,


as almas educadas nas veredas,


as mãos firmes, delicadamente


portando as chaves de um reino


cujo tempo chegou, e nós sabemos.


Words by Lívia Soares
Painting by John William Waterhouse

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Frase do Mês


"Antes de ter uma literatura,

um país precisa ter uma alma."

CAROLINA NABUCO

(1890-1981)

Photo by Julia Margaret Cameron

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Forget Me Not


Hoje eu acordei tão feliz que

pouco se me dava estar morta.

Respirei o silêncio da casa.

Todos partiram há muito tempo -

e não havia nisto qualquer dor.

Pelas frestas, entravam filetes de luz

vinda não sei de onde (sim, era

o sol - mas daquele sol que adentra,

às vezes, uma velha catedral).

Um zumbido ínfimo, espécie de

surdo ronronar, envolvia os ângulos todos,

as paredes lisas pintadas de claro,

em cores alegres (o que é uma cor alegre?)

para a nova família que aqui virá viver

e morrer. Agora, nessas paredes,

nem sombra da marca dos retratos

daqueles que eu amei. Em algum lugar,

eles se ocupam de suas vidas;

às vezes, gastam dois ou três minutos

tentando reaver os contornos do meu rosto -

tarefa que se tornará mais difícil a cada dia.

Não há nisto qualquer dor. Porque

eu sei que, sem querer, meu rosto

se desfez, se desfará em areia e vento,

para que dentro de suas almas

eu me precipite em flocos finos de memória -

até que eles me lembrem sem lembrar.

Então eu respirei fundo, arrepiando as telhas

(minha alma é tão maior que a casa!)

e num instante me vi em plena rua

(não precisava mais de portas nem janelas)

passando entre os passantes, em forma de aragem.

O dia estava lindo, as pessoas e as coisas

me comoviam, sem que eu soubesse por quê

(eu estava perto, tão perto de compreender!).

E já que estava passeando, sobrevoei

também o cemitério florido, inundado

pelo canto dos passarinhos, em sua azáfama

colorida. Vi meu nome entalhado numa lápide.

Ao seu redor, dúzias de rosas levemente fanadas.

E não houve nisto qualquer dor.

Eu também era uma pessoa muito ocupada.

Eu era, agora, íntima de um milagre -

e tinha a eternidade para cuidar.
Words By Lívia Soares
Photo by José Boldt

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Cinebiografema II (O "Making Of" do Meu Segredo)




O cinema me esmaga com sua voz


na sala escura: "Sou tudo que podes ter.


Sou a poesia travestida, humilhada


pela obrigação de agradar."


Mas eu, que o amo tanto, sei


que ele é apenas o primo pobre da poesia


usando roupas caras de outros tempos


para disfarçar a falência.


Por exemplo, hoje, essa linda capa


à espanhola, imitando um nobre de Velásquez


em púrpura profunda feito as cortinas


do Cine Paissandu, mas puída, grande demais


e cheirando a mofo. As lágrimas


em meus cílios se devem a ácaros


ou recuerdos? A luta continua,


não toque no meu companheiro, etc.


Mas de vez em quando, é preciso


algo mais que uma câmera na mão


e certas idéias na cabeça.


Há que debruçar-se sobre um verso de Virgílio,


contemplar um chiaroscuro de Georges de La Tour,


estacar ante um olhar perdido de Monty Clift,


a dois passos da obscuridade...


"Está muito bem", sussurra a voz,


"mas tudo no mais absoluto sigilo,


para não estragar o domingo das pessoas".


O cinema me esmaga e me atira na rua,


sozinha. Mas não por muito tempo.
Words by Lívia Soares
Imagem: o ator Montgomery Clift, circa 1950 (sem créditos)

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Dos "Cadernos de Prosa": Notas Sobre um Jardim Selvagem (variação sobre um tema de Lygia Fagundes Telles)


1. Se falo agora sobre o jardim selvagem, é porque o perdi. Embora ainda exista a estrada que vai dar aos seus portões.

2. Aquele pomar de lábios e presságios, que violavas com longos dedos trêmulos de hera, tinha em seu centro um lago a dormir, enfeitiçado. Ou seria um pântano? E ao redor do espelho prateado, divindades marmóreas inclinavam ligeiramente as frontes, quando passavas.

3. Lá, o teu suor era tão sagrado quanto o orvalho. Tua saliva entreabria as pétalas mais renitentes. Usavas a névoa como um vestido, a umidade se imiscuindo na fina urdidura do tecido, colando-se às tuas formas de tal modo que ficavas pronta, oferecida como um fruto.

4. Deus deve ter rido muito das nossas pretensões sacrílegas: deu-nos permissão para delinqüir. O pecado vinha com o aval dos céus e uma coroa de algas, liquens e nenúfares. Nós éramos vagamente sagradas, dissolvidas no mormaço primevo dos desejos, no paraíso dos odores misturados e línguas que se bifurcavam. As palavras se partindo, silenciando quase; voltando a ser apenas um rumor. E ninguém para nos chamar de Fleurs du Mal. O mal ainda não fora inventado.

5. O sopro violento da paixão desmantelava os canteiros, desarranjava as pétalas, enchia de sombra as tardes mornas. Logo aprenderíamos a nos ferir. Os beijos se tornariam cruéis e impacientes. Na lividez arrebatadora das nossas espáduas, colos e seios, floresciam já os primeiros hematomas vampirescos. O lago tinha reflexos rubros doentios, as frutas amargavam na boca, os dias de luxo inimaginável começavam a cobrar seu preço em lágrimas. Para viver, nós dependíamos de um jardim selvagem.

6. Esvaziamos as taças com ânsia; atiramos as taças no chão com toda a força; dançamos sobre os cacos até nos tatuarmos como um vitral sangrento. E passaram-se anos.

7. Haverá alguma coisa no interior das palavras? Alguma conexão com aquilo que vivi? E se, durante o chá, algum sabor mais exótico despertar a tua audácia e perguntares polidamente pelo jardim?

8. O jardim selvagem se estende ao infinito.
Words by Lívia Soares
Drawing by Dante Gabriel Rossetti


segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Pensas que Não Sei Andar de Salto?


perdoa-me por ser sentimental

mas vou te contar um milagre

eu tive um dia perfeito

e tu não estavas nele

não sei como poderei dizê-lo

não sei se aquilo pode ser traduzido

mas pela primeira vez em muitas luas

eu estive mancomunada com o destino

meu desejo cortejou as circunstâncias

e foi sempre bem-vindo

afiei as garras em outros veludos

aprendi novos passos de dança

e o fruto da perfeição se desprendeu

e deslizou em minha boca, simplesmente

porque havia chegado o seu dia

e por causa desse dia perfeito

aprendi a amar a imperfeição dos outros dias

com seus punhais agudos e tesouros ocultos

onde já não estás, e nem assim

eu consigo apagar do rosto este meio-sorriso

de quem encontrou seu lugar:

no meio do redemoinho

à beira do próximo êxtase
Words by Lívia Soares
Photo by José Boldt

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Frase do Mês


"Quando estranho uma palavra, aí é que ela começa a fazer sentido;

quando estranho a vida, aí é que começa a vida."

CLARICE LISPECTOR

Imagem: o general romano (Robert Taylor) e sua refém (Deborah Kerr) apaixonando-se em "QUO VADIS?"

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

School's out, forever...


Ainda o piquenique. Desde a segunda-feira, 15, tenho estado sob o efeito desta maravilha. Assistir várias vezes é uma coisa; escrever a respeito é algo bem diferente. Encontrei mais duas imagens apaixonantes quando estava acabando de escrever: o cartaz original do filme e a capa da edição especial em DVD com a versão do diretor. E descobri que sonhar com este filme é muito estimulante para quem trabalha com a escrita. Por favor, leiam a postagem anterior.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Da série "A Cinemateca de Babel": PIQUENIQUE NA MONTANHA MISTERIOSA






Para a crítica especializada e o público em geral, este é o belo e perturbador filme com que, em 1975, o diretor Peter Weir chamou a atenção do mundo para o cinema feito na Austrália. Para três ou quatro gerações de cinéfilos, é um objeto de culto. Gabou-se muito a habilidade com que, nele, Weir retrata o confronto entre os mistérios de uma natureza exuberante e a tradição inglesa transplantada para o continente australiano. Para além disso, penso que aqui se trata de uma obra-prima capaz de aproximar o cinema da poesia (sim, isso existe, embora seja raro). A trama é aparentemente simples, quase inexistente. No Dia dos Namorados (St. Valentine's Day) de 1900, um grupo de alunas de um internato para moças sai para um piquenique em Hanging Rock, com duas de suas professoras. Cinco (quatro alunas e uma professora) se desgarrarão do grupo, contrariando as ordens expressas da diretora da escola, Mrs. Appleyard (Rachel Roberts), para explorar os caminhos próximos. Três delas nunca mais serão vistas e duas voltarão em crise histérica. O personagem que conduz o fio dos eventos é Miranda (Anne Lambert), uma das alunas do Colégio Appleyard, adolescente cuja beleza etérea só encontra paralelo na sua bondade e na graça natural com que ela exerce a liderança sobre as outras. Todos são, de algum modo, afetados por ela. Para sua companheira de quarto, Sara (Margaret Nelson), Miranda é, camonianamente, "a coisa amada", com tudo que isso implica; para Mademoiselle de Portiers (Helen Morse), a professora de francês, Miranda é um anjo egresso de uma tela de Boticelli; em Michael (Dominic Guard), o jovem aristocrata que a vê apenas uma vez, cruzando um riacho a caminho de Hanging Rock, Miranda causa uma impressão tão forte que ele passa a segui-la, arriscando a sanidade e a vida pelas veredas da montanha... a própria câmera, ao enquadrá-la, ao seguir-lhe os movimentos, tem uma solenidade que aponta para o sublime. Miranda é primeiro rosto que vemos na tela; é também o último, fechando a narrativa, ambos em close-ups magníficos, como se a intenção fosse eternizá-la em nossa memória. Todos os olhares são atraídos para ela, não para desvendar um mistério, mas porque ela encarna o mistério. Ante a visão daquela beldade clássica em trajes vitorianos, caminhando montanha acima com a graça olímpica de uma divindade, emoldurada pelos ventos que uivam em uníssono com a flauta de Pan soprada por Gheorghe Zamfir, a gente pode pensar: "É uma deusa pagã, de volta ao lar..."; ou deixar-se embriagar pela beleza e não pensar em nada; ou sentir mil outras coisas que nunca ocorreram a ninguém. Para os que ficam mais abaixo, a vida parece exilada do que tinha de mais precioso. A dor de Sara, por exemplo, é avassaladora e resignada, no melhor estilo trágico-romântico; as feições do jovem Michael aparecem, de uma hora para outra, vincadas por traços de melancolia e perplexidade (então é assim, para amar e perder basta um dia, um olhar, um instante...); os corpos de Miranda, Marion (Jane Vallis) e Miss McCraw (Vivean Gray) jamais serão encontrados. Para aqueles que ficam (o espectador, inclusive) tudo o que resta são fragmentos de lembranças que se esgarçam em detalhes sutis, pequenas senhas de inquietude que a narrativa de Peter Weir espalha e que se vão cravando n'alma feito farpas: por que os deuses demoram tanto a visitar a Terra? Por que a beleza há de custar sempre tão caro? E se...

(Piquenique na Montanha Misteriosa/Picnic at Hanging Rock. Austrália, 1975. Produzido por Patricia Lovell, McElroy & McElroy e South Australian Film Corporation. Duração: 115 minutos. Direção de Peter Weir. Roteiro de Cliff Green baseado na novela homônima de Joan Lindsay. Trilha sonora de Bruce Smeaton e Gheorghe Zamfir. Com Rachel Roberts, Helen Morse, Dominic Guard, Anne Lambert, Margaret Nelson e outros. Disponível em DVD no Brasil pela Editora NBO (cópia da Criterion Collection).

Dos "Cadernos de Poesia": Estação Liberdade


O que eu perdi não foi perdido:


escorregou entre minhas garras,


espalhou-se pelo mundo


e espalhado permanece, à minha volta.


O que eu ganhei foi arrancado


com as unhas ávidas e muitos dentes


e uma vez devorado,


apenas aumentou a minha fome.


Porém aquilo que o desconhecido,


tocado pela graça, me presenteou,


eis o tesouro, o ouro,


o melhor da vida. De repente,


o vinho tocando harpa nas papilas,


o leito dos amantes de Verona,


a noite mais clara que a aurora,


a aurora compartilhada como pão:


tudo isso pode ser aqui, agora.


Depois de tudo, eu tenho quase


tudo. Com os braços vazios,


um coração vazio,


com os pés descalços, a pé,


caminho em direção àquilo


que me pertence. E ando


a pintar, com esmero, os lábios


para alguém que não conheço.
Words by Lívia Soares
Photo by José Boldt

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Da série "A Cinemateca de Babel": CARMILLA, A VAMPIRA DE KARNSTEIN



Devo esclarecer desde já que os filmes aqui comentados obedecerão a um critério de escolha muito peculiar, isto é, obedecerão à disposição labiríntica da minha memória afetiva. Serão filmes de qualquer gênero, diretor, nacionalidade ou época, bastando que tenham me tocado profundamente e que eu me sinta compelida a vê-los e revê-los pela vida afora. Começo com este que é um dos mais queridos cult movies de todos os tempos. O roteiro se baseia na obra de Joseph Sheridan Le Fanu, "Carmilla", novela gótica muito amada pelos leitores e quase sempre presente em antologias e coleções do gênero. Há indícios de que "Carmilla", a novela, tenha influenciado Bram Stoker e sua mais famosa criação, "Drácula". O livro de Le Fanu tem seus próprios méritos e merece um capítulo à parte; eu, pessoalmente, penso que no filme foi aproveitada, basicamente, a atmosfera requintada e doentia da novela. Mas o que me fascina mesmo é a sua (do filme) explosiva mistura de horror kitsch, sensualidade mórbida e humor perverso que provoca risos nervosos, singelos prazeres que descobrimos em algum lugar da puberdade, talvez enquanto fazíamos fila para ver Monga, a mulher que virava macaco... Para agravar a situação, o papel principal está a cargo de ninguém menos que a fabulosa Ingrid Pitt, atriz polonesa que se tornaria um ícone do cinema de horror ao longo dos anos 1970 (aliás, não devemos esquecer que "Carmilla" é um produto dessa época, a década mais furiosamente hedonista de um século de excessos. Talvez haja aí uma pista para a decifração do fascínio permanente deste filme... ); Peter Cushing faz o general Spielsdorf, um cavalheiro em cuja mansão se inicia a história. Sua filha Laura (Pippa Steele) será a primeira de uma série de moças seduzidas, assediadas e (de muito bom grado) sangradas até a morte por uma bela aristocrata de voz rouca, corpo escultural e uma insaciável sede de sangue. Há muitas seqüências memoráveis; para mim, uma das melhores é quando Carmilla, acuada, começa a seduzir e matar todos aqueles que tentam separá-la de sua amante-vítima favorita, Emma Morton (Madeline Smith) e é finalmente capturada enquanto tenta arrastar Emma, exangue e apaixonada, para sua tumba no castelo dos Karnstein. Claro que, no final, Carmilla será desmascarada e morta (pela segunda vez) à maneira clássica dos contos folclóricos sobre vampiros, isto é, com uma estaca no coração e depois, decapitada. Certos prazeres custam caro. Mas até lá, quantos sustos, arrepios e gargalhadas para os fãs... A propósito, este filme é o início da "Trilogia Karnstein". Quem gostar e quiser mais do mesmo deve prosseguir e ver "Luxúria de Vampiros" (Lust for a Vampire) de Jimmy Sangster e "As Filhas de Drácula" (Twins of Evil) de John Hough. Mas o meu favorito é este.
(Carmilla, A Vampira de Karnstein/The Vampire Lovers. Inglaterra, 1970. Produzido por Hammer Films-American International Pictures. Duração: 91 minutos. Direção de Roy Ward Baker. Roteiro de Tudor Gates baseado na novela "Carmilla", de Joseph Sheridan Le Fanu. Música de Harry Robinson. Com Ingrid Pitt, Peter Cushing, Pippa Steele, Madeline Smith e outros. Disponível no Brasil em DVD pela revista Dark Side DVD, ano 1, nº 2).

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Cinebiografema I (Saudades de Jean Seberg)


Todo mundo namora
mesmo que o amor
dure só duas horas:
supérfluo
o uniforme do Superman
na fortaleza da Solidão.

Words By Lívia Soares
Photo: Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg em "Acossado", de Jean-Luc Godard

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Frase do Mês


"Só as pessoas superficiais não julgam pelas aparências."

OSCAR WILDE in O RETRATO DE DORIAN GRAY


Photo by Julia Margaret Cameron

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Cariátide sob a Chuva


"O amor é sempre verdadeiro, o mundo é que pisa em falso", tu me dizes, compenetrada, compondo - sem querer - meu epitáfio. Nuvens e areia se precipitam sobre nós, em gotas que pesam e ferem. Nós corremos na tarde cinza, fustigadas por areia e vento, machucando os pés no brilho cambiante de um dia que se finda; "É quase hora de jantar", dizes, quando adentramos a varanda de uma casa ao pé do mar, aquela mesma casa cuja viga mestra é o teu corpo e cujo alento é a tua alma. "E acima de tudo, eu quero que fiques", dizes ainda, enquanto as vozes distantes se aproximam e nós nos incorporamos naturalmente à companhia daqueles que te amam, como se tempestades elétricas não irrompessem a cada instante, na sala, na cozinha, em qualquer lugar, só porque o teu hálito existe, só porque existe o teu perfil na tarde cinza. Com a voz sumida, as chaves de um reino nas mãos suadas, eu pergunto ainda, antes do rapto: "Acima do desejo ou da necessidade?"
Words by Lívia Soares
Painting by Christopher Mir

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": No Limiar






Por vezes, sinto no peito
avultar a forma nítida de um soluço
que não terá forças para subir
à garganta e tornar-se, enfim,
um soluço real. Daí o ardil de
apresentar-se como pergunta:
O que você vai ser quando crescer?
Uma imponente ruína?
Um cadáver ilustre?
Um fantasma de estimação?
Ainda não dá para saber
se teremos tempo para tanto.
Mas já é possível ver que, sem mim,
não haverá transubstanciação;
sem mim, você não crescerá,
não me esquecerá, não irá embora,
não se tornará um estranho.
E não use os verbos no futuro, ainda.
Ainda estamos aqui, sentados
no negro interior do amor.
E o que se quer do amor, além
dos seus poderes de ilusionista?
É a minha vez de estar à porta
do seu teatro mágico. E bato.


Words by Lívia Soares 
Photo by Diane Arbus

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Limântrias, uma Tradução





mantras limados até
caberem no abismo hiante
entre uma asa e outra
entre uma folha e outra
entre uma gota e outra
entre a voz
e seu mistério


Words by Lívia Soares

Photo by Ansel Adams

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Chronos & Cia.


Cada dia te entrega e te arrebata.
As noites são labirintos lunares de outono,
num país onde não há outono,
numa casa que não é a minha.
O tempo serpenteia, arrastando nossos corpos.
Quem pode com seu fluxo? Quem se importa?
À sombra do teu cabelo, mal posso esperar
pelos sabores e odores dissonantes, em cascata.
Quanto pagarei pelo banquete?
Em meio à perfeição do encantamento,
tudo aquilo que não pode durar
tem a perenidade das coisas inventadas:
cada dia me entrega e me arrebata.

 Words by Lívia Soares
Image: "The Rape of Proserpina", sculpture by Gian Lorenzo Bernini (detail)

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Para Retocar uma Estátua



Tarde em sol maior, cigarras
vertem ouro líquido em meus ouvidos,
escaravelho se traveste em jóia rara,
aranha - sem querer - prende o arco-íris em sua teia,
só para te lembrares do inferno:
sob a palidez da tua pele, vibra
um inferno tão denso que, para vê-lo,
deve-se fechar bem os olhos.
Ouve-se, então, o interior de uma concha
onde cabe inteiro o mar. E assim
eu arremeto em ondas contra o teu silêncio.
Esperar é uma erosão a roer os milênios
uma vez e outra vez e outra mais,
lamber a dureza dos picos escarpados,
lamber o azul aéreo dos dias,
até transformar teus ossos em espuma,
até me transformar em teu destino.

Words by Lívia Soares

Image: "Venus", sculpture by Praxiteles (detail)

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

In the Beginning...



Agora há pouco, ao dar meus primeiros e incertos passos neste blog, lembrei, de repente, que hoje é o aniversário da minha mãe. Se estivesse entre nós, estaria completando setenta e quatro anos. Não pude deixar de sentir um arrepio na aura. A fotografia de Julia Margaret Cameron, o verso de Safo, o título de um filme de Alfred Hitchcock (A Dama Oculta), rodopiavam há alguns dias entre os meus pensamentos. Foram-se fundindo aos poucos, entre uma conversa e outra com meu amigo Carlos Henrique. Ele vivia me instigando a fazer um blog. Eu relutava. Mania de postergar a felicidade? Mas quem disse que vou ser feliz aqui? Minhas mãos estão geladas e trêmulas. Mesmo por trás da máscara virtual, sinto-me ruborizar até a raiz dos cabelos. E Carlos botando pilha: "Anda com isso, quero ver seus poemas na internet, quero vê-los publicados, quero que o mundo os veja. Vamos fazer logo esse blog, ainda hoje." Quando olhei para os adereços da minha própria máscara virtual, fiquei momentaneamente desconcertada. Gostei, achei que me traduzia, mas não sabia o porquê. Arrisco uma explicação: a criancinha adormecida, velada pela sombra materna, funciona para mim como uma metáfora daquilo que em nós desmaia, de pura exaustão, depois de muito brincar (tentativa e erro). O feminino absorto que nos observa enquanto dormimos: essa seria uma das formas que uma dama pode assumir para se ocultar. Receio que essa criança seja eu, em mais de um sentido. Receio que essa mulher seja eu, em mais de um sentido. Suponho que as mães não morram nunca, mesmo depois que até as suas feições já se tornaram imprecisas em nossa lembrança. A mãe é o primeiro enigma, a primeira lição de amor, a primeira grande perda, a porta através da qual somos expulsos do paraíso (amniótico) para o mundo... Mas como me queixar? Pois no mundo, entre outras coisas, encontraremos aqueles e aquelas que estamos destinados a amar. Para isso vim. Para melhorar a qualidade dos meus encontros até que se tornem poéticos. Para melhorar meus poemas até que eles se tornem subitamente belos - com toda a força misteriosa dos começos.


Palavras de pórtico por Lívia Soares

Imagem p&b: Julia Margaret Cameron
Imagem colorida: anônimo