Todos os dias, mais ou menos à mesma hora, presenciamos as coisas todas irem ficando cada vez mais longe, até as mais importantes, aquelas fundamentais, enquanto nosso corpo vai cedendo a uma espécie de delicioso torpor. Na gigantesca retorta do nosso cérebro, até os nossos pensamentos - representações de coisas - também são pouco a pouco diluídos e amalgamados, acabando por se rarefazer numa espécie de fluido espectral, extenso e inabarcável feito um mar. Submersos nessas águas primordiais, vagamos junto com uma infinidade de fragmentos de coisas fora do lugar, nós nesse momento sendo apenas um fragmento a mais. Abismados e esmagados pela súbita leveza de tudo, estamos sonhando - o mundo desperto tem, então, a mesma relevância que teriam os restos de um antigo naufrágio. Dizem os cientistas que esse momento de abandono é um modo de escapar da loucura, além de ser bom para cicatrizar nossas feridas - as da carne e as da alma. Mas nós somos um tanto mais ambiciosos.
Sonhando, visitamos a alcova de uma certa beleza adormecida. Eis aí um mistério engastado em outro, de um modo que nenhum joalheiro desperto poderia fazer com tanto engenho - o que, obviamente, não impede ninguém de tentar, sendo esse, a nosso ver, o modo como nasce uma grande parte das jóias que há no mundo desperto. E que nos faz indagar : com que sonha uma beleza adormecida? Fazemos essa pergunta sem nenhuma esperança de resposta, um pouco por despeito, um pouco para demonstrar que nem a psicanálise nem o feminismo conseguiram estragar inteiramente este mundo.
Mas é preciso ir em frente, impulsionados pela correnteza sutil que nos permite bailar em volta de tudo que não compreendemos, visitando as cidades que foram apenas imaginadas e buscadas - jamais palmilhadas. E são esses não-lugares que afloram, em certos momentos, quando vagamos, acordados, pelas ruas das cidades que construímos. É por causa dessas cidades sonhadas que enfrentamos a solidez do mundo desperto. Para que elas tenham janelas dando para uma alcova que receba o espectro cansado, inclinado sobre o leito da beleza adormecida.
E estremecemos quando a luz adentra, inexorável, expulsando o sono - incitando-nos a viver, viver, viver.
Sonhando, visitamos a alcova de uma certa beleza adormecida. Eis aí um mistério engastado em outro, de um modo que nenhum joalheiro desperto poderia fazer com tanto engenho - o que, obviamente, não impede ninguém de tentar, sendo esse, a nosso ver, o modo como nasce uma grande parte das jóias que há no mundo desperto. E que nos faz indagar : com que sonha uma beleza adormecida? Fazemos essa pergunta sem nenhuma esperança de resposta, um pouco por despeito, um pouco para demonstrar que nem a psicanálise nem o feminismo conseguiram estragar inteiramente este mundo.
Mas é preciso ir em frente, impulsionados pela correnteza sutil que nos permite bailar em volta de tudo que não compreendemos, visitando as cidades que foram apenas imaginadas e buscadas - jamais palmilhadas. E são esses não-lugares que afloram, em certos momentos, quando vagamos, acordados, pelas ruas das cidades que construímos. É por causa dessas cidades sonhadas que enfrentamos a solidez do mundo desperto. Para que elas tenham janelas dando para uma alcova que receba o espectro cansado, inclinado sobre o leito da beleza adormecida.
E estremecemos quando a luz adentra, inexorável, expulsando o sono - incitando-nos a viver, viver, viver.
Words by Livia Soares
Image: a painting by Jared Joslin, somewhat modified
Image: a painting by Jared Joslin, somewhat modified
13 comentários:
Lindas palavras que nos fazem pairar entre o sonho e a realidade da vida que nos desperta.
Um abraço deste lado de cá.
Que ato obrigatório é viver.
Querida Lívia,
Gosto muito de como tece as palavras, tem uma medida exata. A crônica é linda, com um final delicioso (desses trechos que quando encontramos, deixamos marcados e o guardamos, para poder regressar outras vezes...).
E obrigada pela saudade. Assim que possível, regressarei.
Um abraço enorme.
Que bonita crônica, Lívia. Lembrou-me um pouco as Cidades Invisíveis de Calvino.
Um beijo para você.
Certamente um dos mais belos textos que lí em seu Blog.
Grato,
Jorge Elias
Um texto sobre o sono. Eu que adoro dormir bem... Gostei imenso.
Um beijo.
Li, mas preciso ler com a atenção que as tuas palavras sempre me merecem.
Por isso deixo um beijo e quando estiver com mais tempo volto para ler como deve ser.
:)
O pior é quando sonhamos de olhos abertos, numa realidade virtual.
Bjs
Lívia
Como escreve bem! Embalei-me nas palavras
:))
Querida! Tomei a liberdade de publicar um fragmento de teus escritos deliciosos e delicados lá em meu blog!... Se houver algum problema, avise-me... mas te digo que é uma honra, um prazer, partilhar letras tão bem tecidas com outros leitores e espaços! Abraço azul.
Querida Lívia,
voltei para reler com atenção o teu belo texto.
Deixo-te um beijo meu
e Pelo sonho é que vamos
de Sebastião da Gama.
Pelo sonho é que vamos,
Comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não frutos,
Pelo Sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
Que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
Com a mesma alegria,
o que é do dia-a-dia.
Chegamos? Não chegamos?
-Partimos. Vamos. Somos.
“Identifico plenamente com
o seu olhar.
Até me dá vontade de
começar a fazer fotografias por aí...”
Que mais pode querer um simples fotografo como eu depois destas palavras que a Livia teve a amabilidade de escrever ?
Eu vou continuar a fazer por merecer este seu carinho, e quem sabe, um dia destes a Livia pegue numa máquina fotográfica.
Vai ver como é muitíssimo mais difícil o que a Livia faz, a escrita com uma caneta.
Com amizade
zé boldt
Ótimo texto.
Belo blog.
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