Não te deixes levar pelos
movimentos oculares rápidos, esse
manancial de fábula e engano.
Quanto do Sonhar não passa
de um delírio que deixa resíduos
nas pálpebras! E no entanto,
eu te digo: sou daqueles que
nasceram com a fronte marcada,
em mim o Sonhar esfumou as fronteiras
entre céus e terras, corpo e alma
e todos os reinos intersticiais.
Quando acordo, tenho marcas por
toda parte e nunca sei o quanto
de mim deixei na terra das sombras.
Tenho, por exemplo, nas pontas
dos dedos um gosto de auroras;
algumas estrelas tatuadas na
noite escura da alma; sardas
salpicadas pelas colinas num torso
a desmanchar-se de brancura;
a Via Láctea disposta e alojada
entre as costelas de um visitante;
a persistência de azuis aéreos
explodindo no céu da boca;
tempestades de areia traçando
arabescos e enigmas convidativos...
Talvez por isso, não ousei, nunca,
duvidar do monumento a que
chamei - a Vida Verdadeira. Assim
eu nos vejo quando sonho. Tu
estás comigo, não como "deverias",
não a estupidez de uma utopia.
Estás comigo inteiramente, com
todas as colunas do Templo restauradas,
com todos os Paraísos reconquistados,
bem visíveis os termos da equação.
E ao despertar, o monumento
se confirma na largueza dos céus,
nas pinceladas da aurora,
na gravidade dos ventos: somos nós.
Os corpos já tocados pelo outono,
as almas educadas nas veredas,
as mãos firmes, delicadamente
portando as chaves de um reino
cujo tempo chegou, e nós sabemos.
Words by Lívia Soares
Painting by John William Waterhouse
2 comentários:
Cara Lívia, voltei aqui a partir da leitura de um comentário teu no Almofariz, em que comentas o poema do Carlos sobre as "musas que já se foram". Tão bonito o que escreveste!... Então fiquei com vontade de te visitar, e dizer que linkarei o teu blog lá no Ânkoras & Asas, está bem? Beijos alados.
Caríssima;
.
Saberia eu pouco explicar acerca do que sempre evocam seus versos. Algo de uma bela estranheza, como se nos deparássemos com animais mitológicos vivendo hoje. É mais ou menos como me sinto, verdadeiramente, e o ato de relê-los mais e mais patenteia a idéia de que poemas escritos com arte têm a capacidade de nos transportar além das fronteiras reais, do que é humanamente palpável.
Belíssima postagem.
No mais, recuso-me a falar sobre a escolha de Waterhouse. É que não sei explicar o que me parece supremo!
Abraços do
Carlos
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