sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Chronos & Cia.


Cada dia te entrega e te arrebata.
As noites são labirintos lunares de outono,
num país onde não há outono,
numa casa que não é a minha.
O tempo serpenteia, arrastando nossos corpos.
Quem pode com seu fluxo? Quem se importa?
À sombra do teu cabelo, mal posso esperar
pelos sabores e odores dissonantes, em cascata.
Quanto pagarei pelo banquete?
Em meio à perfeição do encantamento,
tudo aquilo que não pode durar
tem a perenidade das coisas inventadas:
cada dia me entrega e me arrebata.

 Words by Lívia Soares
Image: "The Rape of Proserpina", sculpture by Gian Lorenzo Bernini (detail)

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Para Retocar uma Estátua



Tarde em sol maior, cigarras
vertem ouro líquido em meus ouvidos,
escaravelho se traveste em jóia rara,
aranha - sem querer - prende o arco-íris em sua teia,
só para te lembrares do inferno:
sob a palidez da tua pele, vibra
um inferno tão denso que, para vê-lo,
deve-se fechar bem os olhos.
Ouve-se, então, o interior de uma concha
onde cabe inteiro o mar. E assim
eu arremeto em ondas contra o teu silêncio.
Esperar é uma erosão a roer os milênios
uma vez e outra vez e outra mais,
lamber a dureza dos picos escarpados,
lamber o azul aéreo dos dias,
até transformar teus ossos em espuma,
até me transformar em teu destino.

Words by Lívia Soares

Image: "Venus", sculpture by Praxiteles (detail)

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

In the Beginning...



Agora há pouco, ao dar meus primeiros e incertos passos neste blog, lembrei, de repente, que hoje é o aniversário da minha mãe. Se estivesse entre nós, estaria completando setenta e quatro anos. Não pude deixar de sentir um arrepio na aura. A fotografia de Julia Margaret Cameron, o verso de Safo, o título de um filme de Alfred Hitchcock (A Dama Oculta), rodopiavam há alguns dias entre os meus pensamentos. Foram-se fundindo aos poucos, entre uma conversa e outra com meu amigo Carlos Henrique. Ele vivia me instigando a fazer um blog. Eu relutava. Mania de postergar a felicidade? Mas quem disse que vou ser feliz aqui? Minhas mãos estão geladas e trêmulas. Mesmo por trás da máscara virtual, sinto-me ruborizar até a raiz dos cabelos. E Carlos botando pilha: "Anda com isso, quero ver seus poemas na internet, quero vê-los publicados, quero que o mundo os veja. Vamos fazer logo esse blog, ainda hoje." Quando olhei para os adereços da minha própria máscara virtual, fiquei momentaneamente desconcertada. Gostei, achei que me traduzia, mas não sabia o porquê. Arrisco uma explicação: a criancinha adormecida, velada pela sombra materna, funciona para mim como uma metáfora daquilo que em nós desmaia, de pura exaustão, depois de muito brincar (tentativa e erro). O feminino absorto que nos observa enquanto dormimos: essa seria uma das formas que uma dama pode assumir para se ocultar. Receio que essa criança seja eu, em mais de um sentido. Receio que essa mulher seja eu, em mais de um sentido. Suponho que as mães não morram nunca, mesmo depois que até as suas feições já se tornaram imprecisas em nossa lembrança. A mãe é o primeiro enigma, a primeira lição de amor, a primeira grande perda, a porta através da qual somos expulsos do paraíso (amniótico) para o mundo... Mas como me queixar? Pois no mundo, entre outras coisas, encontraremos aqueles e aquelas que estamos destinados a amar. Para isso vim. Para melhorar a qualidade dos meus encontros até que se tornem poéticos. Para melhorar meus poemas até que eles se tornem subitamente belos - com toda a força misteriosa dos começos.


Palavras de pórtico por Lívia Soares

Imagem p&b: Julia Margaret Cameron
Imagem colorida: anônimo