quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Diz Que Até Não É Um Mau Blog



Agradeço ao amigo Vieira Calado (http://vieiracalado-poesia.blogspot.com ) a delicadeza de me ofertar este prêmio. Aí vai o regulamento:
Eis os parâmetros inerentes à condição:
1. Este prêmio deve ser atribuído aos blogs que consideras serem bons, entende-se como bom os blogs que costumas visitar regularmente e onde deixas comentários.
2. Só e somente se recebeste o prêmio "Diz que até não é um mau blog", deves escrever um post :
- Indicando a pessoa que te deu o prêmio com um link para o respectivo blog;
- A tag do prêmio;
- As regras;
- E a indicação de outros 7 blogs para receberem o prêmio.
3. Deves exibir orgulhosamente a tag do prêmio no teu blog, de preferência com um link para o post em que falas dele.
Indico os seguintes blogs:




Dos "Cadernos de Poesia": Morpheus, uma Tradução


Não te deixes levar pelos


movimentos oculares rápidos, esse


manancial de fábula e engano.


Quanto do Sonhar não passa


de um delírio que deixa resíduos


nas pálpebras! E no entanto,


eu te digo: sou daqueles que


nasceram com a fronte marcada,


em mim o Sonhar esfumou as fronteiras


entre céus e terras, corpo e alma


e todos os reinos intersticiais.


Quando acordo, tenho marcas por


toda parte e nunca sei o quanto


de mim deixei na terra das sombras.


Tenho, por exemplo, nas pontas


dos dedos um gosto de auroras;


algumas estrelas tatuadas na


noite escura da alma; sardas


salpicadas pelas colinas num torso


a desmanchar-se de brancura;


a Via Láctea disposta e alojada


entre as costelas de um visitante;


a persistência de azuis aéreos


explodindo no céu da boca;


tempestades de areia traçando


arabescos e enigmas convidativos...


Talvez por isso, não ousei, nunca,


duvidar do monumento a que


chamei - a Vida Verdadeira. Assim


eu nos vejo quando sonho. Tu


estás comigo, não como "deverias",


não a estupidez de uma utopia.


Estás comigo inteiramente, com


todas as colunas do Templo restauradas,


com todos os Paraísos reconquistados,


bem visíveis os termos da equação.


E ao despertar, o monumento


se confirma na largueza dos céus,


nas pinceladas da aurora,


na gravidade dos ventos: somos nós.


Os corpos já tocados pelo outono,


as almas educadas nas veredas,


as mãos firmes, delicadamente


portando as chaves de um reino


cujo tempo chegou, e nós sabemos.


Words by Lívia Soares
Painting by John William Waterhouse

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Frase do Mês


"Antes de ter uma literatura,

um país precisa ter uma alma."

CAROLINA NABUCO

(1890-1981)

Photo by Julia Margaret Cameron

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Forget Me Not


Hoje eu acordei tão feliz que

pouco se me dava estar morta.

Respirei o silêncio da casa.

Todos partiram há muito tempo -

e não havia nisto qualquer dor.

Pelas frestas, entravam filetes de luz

vinda não sei de onde (sim, era

o sol - mas daquele sol que adentra,

às vezes, uma velha catedral).

Um zumbido ínfimo, espécie de

surdo ronronar, envolvia os ângulos todos,

as paredes lisas pintadas de claro,

em cores alegres (o que é uma cor alegre?)

para a nova família que aqui virá viver

e morrer. Agora, nessas paredes,

nem sombra da marca dos retratos

daqueles que eu amei. Em algum lugar,

eles se ocupam de suas vidas;

às vezes, gastam dois ou três minutos

tentando reaver os contornos do meu rosto -

tarefa que se tornará mais difícil a cada dia.

Não há nisto qualquer dor. Porque

eu sei que, sem querer, meu rosto

se desfez, se desfará em areia e vento,

para que dentro de suas almas

eu me precipite em flocos finos de memória -

até que eles me lembrem sem lembrar.

Então eu respirei fundo, arrepiando as telhas

(minha alma é tão maior que a casa!)

e num instante me vi em plena rua

(não precisava mais de portas nem janelas)

passando entre os passantes, em forma de aragem.

O dia estava lindo, as pessoas e as coisas

me comoviam, sem que eu soubesse por quê

(eu estava perto, tão perto de compreender!).

E já que estava passeando, sobrevoei

também o cemitério florido, inundado

pelo canto dos passarinhos, em sua azáfama

colorida. Vi meu nome entalhado numa lápide.

Ao seu redor, dúzias de rosas levemente fanadas.

E não houve nisto qualquer dor.

Eu também era uma pessoa muito ocupada.

Eu era, agora, íntima de um milagre -

e tinha a eternidade para cuidar.
Words By Lívia Soares
Photo by José Boldt

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Cinebiografema II (O "Making Of" do Meu Segredo)




O cinema me esmaga com sua voz


na sala escura: "Sou tudo que podes ter.


Sou a poesia travestida, humilhada


pela obrigação de agradar."


Mas eu, que o amo tanto, sei


que ele é apenas o primo pobre da poesia


usando roupas caras de outros tempos


para disfarçar a falência.


Por exemplo, hoje, essa linda capa


à espanhola, imitando um nobre de Velásquez


em púrpura profunda feito as cortinas


do Cine Paissandu, mas puída, grande demais


e cheirando a mofo. As lágrimas


em meus cílios se devem a ácaros


ou recuerdos? A luta continua,


não toque no meu companheiro, etc.


Mas de vez em quando, é preciso


algo mais que uma câmera na mão


e certas idéias na cabeça.


Há que debruçar-se sobre um verso de Virgílio,


contemplar um chiaroscuro de Georges de La Tour,


estacar ante um olhar perdido de Monty Clift,


a dois passos da obscuridade...


"Está muito bem", sussurra a voz,


"mas tudo no mais absoluto sigilo,


para não estragar o domingo das pessoas".


O cinema me esmaga e me atira na rua,


sozinha. Mas não por muito tempo.
Words by Lívia Soares
Imagem: o ator Montgomery Clift, circa 1950 (sem créditos)

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Dos "Cadernos de Prosa": Notas Sobre um Jardim Selvagem (variação sobre um tema de Lygia Fagundes Telles)


1. Se falo agora sobre o jardim selvagem, é porque o perdi. Embora ainda exista a estrada que vai dar aos seus portões.

2. Aquele pomar de lábios e presságios, que violavas com longos dedos trêmulos de hera, tinha em seu centro um lago a dormir, enfeitiçado. Ou seria um pântano? E ao redor do espelho prateado, divindades marmóreas inclinavam ligeiramente as frontes, quando passavas.

3. Lá, o teu suor era tão sagrado quanto o orvalho. Tua saliva entreabria as pétalas mais renitentes. Usavas a névoa como um vestido, a umidade se imiscuindo na fina urdidura do tecido, colando-se às tuas formas de tal modo que ficavas pronta, oferecida como um fruto.

4. Deus deve ter rido muito das nossas pretensões sacrílegas: deu-nos permissão para delinqüir. O pecado vinha com o aval dos céus e uma coroa de algas, liquens e nenúfares. Nós éramos vagamente sagradas, dissolvidas no mormaço primevo dos desejos, no paraíso dos odores misturados e línguas que se bifurcavam. As palavras se partindo, silenciando quase; voltando a ser apenas um rumor. E ninguém para nos chamar de Fleurs du Mal. O mal ainda não fora inventado.

5. O sopro violento da paixão desmantelava os canteiros, desarranjava as pétalas, enchia de sombra as tardes mornas. Logo aprenderíamos a nos ferir. Os beijos se tornariam cruéis e impacientes. Na lividez arrebatadora das nossas espáduas, colos e seios, floresciam já os primeiros hematomas vampirescos. O lago tinha reflexos rubros doentios, as frutas amargavam na boca, os dias de luxo inimaginável começavam a cobrar seu preço em lágrimas. Para viver, nós dependíamos de um jardim selvagem.

6. Esvaziamos as taças com ânsia; atiramos as taças no chão com toda a força; dançamos sobre os cacos até nos tatuarmos como um vitral sangrento. E passaram-se anos.

7. Haverá alguma coisa no interior das palavras? Alguma conexão com aquilo que vivi? E se, durante o chá, algum sabor mais exótico despertar a tua audácia e perguntares polidamente pelo jardim?

8. O jardim selvagem se estende ao infinito.
Words by Lívia Soares
Drawing by Dante Gabriel Rossetti