segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Pensas que Não Sei Andar de Salto?


perdoa-me por ser sentimental

mas vou te contar um milagre

eu tive um dia perfeito

e tu não estavas nele

não sei como poderei dizê-lo

não sei se aquilo pode ser traduzido

mas pela primeira vez em muitas luas

eu estive mancomunada com o destino

meu desejo cortejou as circunstâncias

e foi sempre bem-vindo

afiei as garras em outros veludos

aprendi novos passos de dança

e o fruto da perfeição se desprendeu

e deslizou em minha boca, simplesmente

porque havia chegado o seu dia

e por causa desse dia perfeito

aprendi a amar a imperfeição dos outros dias

com seus punhais agudos e tesouros ocultos

onde já não estás, e nem assim

eu consigo apagar do rosto este meio-sorriso

de quem encontrou seu lugar:

no meio do redemoinho

à beira do próximo êxtase
Words by Lívia Soares
Photo by José Boldt

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Frase do Mês


"Quando estranho uma palavra, aí é que ela começa a fazer sentido;

quando estranho a vida, aí é que começa a vida."

CLARICE LISPECTOR

Imagem: o general romano (Robert Taylor) e sua refém (Deborah Kerr) apaixonando-se em "QUO VADIS?"

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

School's out, forever...


Ainda o piquenique. Desde a segunda-feira, 15, tenho estado sob o efeito desta maravilha. Assistir várias vezes é uma coisa; escrever a respeito é algo bem diferente. Encontrei mais duas imagens apaixonantes quando estava acabando de escrever: o cartaz original do filme e a capa da edição especial em DVD com a versão do diretor. E descobri que sonhar com este filme é muito estimulante para quem trabalha com a escrita. Por favor, leiam a postagem anterior.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Da série "A Cinemateca de Babel": PIQUENIQUE NA MONTANHA MISTERIOSA






Para a crítica especializada e o público em geral, este é o belo e perturbador filme com que, em 1975, o diretor Peter Weir chamou a atenção do mundo para o cinema feito na Austrália. Para três ou quatro gerações de cinéfilos, é um objeto de culto. Gabou-se muito a habilidade com que, nele, Weir retrata o confronto entre os mistérios de uma natureza exuberante e a tradição inglesa transplantada para o continente australiano. Para além disso, penso que aqui se trata de uma obra-prima capaz de aproximar o cinema da poesia (sim, isso existe, embora seja raro). A trama é aparentemente simples, quase inexistente. No Dia dos Namorados (St. Valentine's Day) de 1900, um grupo de alunas de um internato para moças sai para um piquenique em Hanging Rock, com duas de suas professoras. Cinco (quatro alunas e uma professora) se desgarrarão do grupo, contrariando as ordens expressas da diretora da escola, Mrs. Appleyard (Rachel Roberts), para explorar os caminhos próximos. Três delas nunca mais serão vistas e duas voltarão em crise histérica. O personagem que conduz o fio dos eventos é Miranda (Anne Lambert), uma das alunas do Colégio Appleyard, adolescente cuja beleza etérea só encontra paralelo na sua bondade e na graça natural com que ela exerce a liderança sobre as outras. Todos são, de algum modo, afetados por ela. Para sua companheira de quarto, Sara (Margaret Nelson), Miranda é, camonianamente, "a coisa amada", com tudo que isso implica; para Mademoiselle de Portiers (Helen Morse), a professora de francês, Miranda é um anjo egresso de uma tela de Boticelli; em Michael (Dominic Guard), o jovem aristocrata que a vê apenas uma vez, cruzando um riacho a caminho de Hanging Rock, Miranda causa uma impressão tão forte que ele passa a segui-la, arriscando a sanidade e a vida pelas veredas da montanha... a própria câmera, ao enquadrá-la, ao seguir-lhe os movimentos, tem uma solenidade que aponta para o sublime. Miranda é primeiro rosto que vemos na tela; é também o último, fechando a narrativa, ambos em close-ups magníficos, como se a intenção fosse eternizá-la em nossa memória. Todos os olhares são atraídos para ela, não para desvendar um mistério, mas porque ela encarna o mistério. Ante a visão daquela beldade clássica em trajes vitorianos, caminhando montanha acima com a graça olímpica de uma divindade, emoldurada pelos ventos que uivam em uníssono com a flauta de Pan soprada por Gheorghe Zamfir, a gente pode pensar: "É uma deusa pagã, de volta ao lar..."; ou deixar-se embriagar pela beleza e não pensar em nada; ou sentir mil outras coisas que nunca ocorreram a ninguém. Para os que ficam mais abaixo, a vida parece exilada do que tinha de mais precioso. A dor de Sara, por exemplo, é avassaladora e resignada, no melhor estilo trágico-romântico; as feições do jovem Michael aparecem, de uma hora para outra, vincadas por traços de melancolia e perplexidade (então é assim, para amar e perder basta um dia, um olhar, um instante...); os corpos de Miranda, Marion (Jane Vallis) e Miss McCraw (Vivean Gray) jamais serão encontrados. Para aqueles que ficam (o espectador, inclusive) tudo o que resta são fragmentos de lembranças que se esgarçam em detalhes sutis, pequenas senhas de inquietude que a narrativa de Peter Weir espalha e que se vão cravando n'alma feito farpas: por que os deuses demoram tanto a visitar a Terra? Por que a beleza há de custar sempre tão caro? E se...

(Piquenique na Montanha Misteriosa/Picnic at Hanging Rock. Austrália, 1975. Produzido por Patricia Lovell, McElroy & McElroy e South Australian Film Corporation. Duração: 115 minutos. Direção de Peter Weir. Roteiro de Cliff Green baseado na novela homônima de Joan Lindsay. Trilha sonora de Bruce Smeaton e Gheorghe Zamfir. Com Rachel Roberts, Helen Morse, Dominic Guard, Anne Lambert, Margaret Nelson e outros. Disponível em DVD no Brasil pela Editora NBO (cópia da Criterion Collection).

Dos "Cadernos de Poesia": Estação Liberdade


O que eu perdi não foi perdido:


escorregou entre minhas garras,


espalhou-se pelo mundo


e espalhado permanece, à minha volta.


O que eu ganhei foi arrancado


com as unhas ávidas e muitos dentes


e uma vez devorado,


apenas aumentou a minha fome.


Porém aquilo que o desconhecido,


tocado pela graça, me presenteou,


eis o tesouro, o ouro,


o melhor da vida. De repente,


o vinho tocando harpa nas papilas,


o leito dos amantes de Verona,


a noite mais clara que a aurora,


a aurora compartilhada como pão:


tudo isso pode ser aqui, agora.


Depois de tudo, eu tenho quase


tudo. Com os braços vazios,


um coração vazio,


com os pés descalços, a pé,


caminho em direção àquilo


que me pertence. E ando


a pintar, com esmero, os lábios


para alguém que não conheço.
Words by Lívia Soares
Photo by José Boldt

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Da série "A Cinemateca de Babel": CARMILLA, A VAMPIRA DE KARNSTEIN



Devo esclarecer desde já que os filmes aqui comentados obedecerão a um critério de escolha muito peculiar, isto é, obedecerão à disposição labiríntica da minha memória afetiva. Serão filmes de qualquer gênero, diretor, nacionalidade ou época, bastando que tenham me tocado profundamente e que eu me sinta compelida a vê-los e revê-los pela vida afora. Começo com este que é um dos mais queridos cult movies de todos os tempos. O roteiro se baseia na obra de Joseph Sheridan Le Fanu, "Carmilla", novela gótica muito amada pelos leitores e quase sempre presente em antologias e coleções do gênero. Há indícios de que "Carmilla", a novela, tenha influenciado Bram Stoker e sua mais famosa criação, "Drácula". O livro de Le Fanu tem seus próprios méritos e merece um capítulo à parte; eu, pessoalmente, penso que no filme foi aproveitada, basicamente, a atmosfera requintada e doentia da novela. Mas o que me fascina mesmo é a sua (do filme) explosiva mistura de horror kitsch, sensualidade mórbida e humor perverso que provoca risos nervosos, singelos prazeres que descobrimos em algum lugar da puberdade, talvez enquanto fazíamos fila para ver Monga, a mulher que virava macaco... Para agravar a situação, o papel principal está a cargo de ninguém menos que a fabulosa Ingrid Pitt, atriz polonesa que se tornaria um ícone do cinema de horror ao longo dos anos 1970 (aliás, não devemos esquecer que "Carmilla" é um produto dessa época, a década mais furiosamente hedonista de um século de excessos. Talvez haja aí uma pista para a decifração do fascínio permanente deste filme... ); Peter Cushing faz o general Spielsdorf, um cavalheiro em cuja mansão se inicia a história. Sua filha Laura (Pippa Steele) será a primeira de uma série de moças seduzidas, assediadas e (de muito bom grado) sangradas até a morte por uma bela aristocrata de voz rouca, corpo escultural e uma insaciável sede de sangue. Há muitas seqüências memoráveis; para mim, uma das melhores é quando Carmilla, acuada, começa a seduzir e matar todos aqueles que tentam separá-la de sua amante-vítima favorita, Emma Morton (Madeline Smith) e é finalmente capturada enquanto tenta arrastar Emma, exangue e apaixonada, para sua tumba no castelo dos Karnstein. Claro que, no final, Carmilla será desmascarada e morta (pela segunda vez) à maneira clássica dos contos folclóricos sobre vampiros, isto é, com uma estaca no coração e depois, decapitada. Certos prazeres custam caro. Mas até lá, quantos sustos, arrepios e gargalhadas para os fãs... A propósito, este filme é o início da "Trilogia Karnstein". Quem gostar e quiser mais do mesmo deve prosseguir e ver "Luxúria de Vampiros" (Lust for a Vampire) de Jimmy Sangster e "As Filhas de Drácula" (Twins of Evil) de John Hough. Mas o meu favorito é este.
(Carmilla, A Vampira de Karnstein/The Vampire Lovers. Inglaterra, 1970. Produzido por Hammer Films-American International Pictures. Duração: 91 minutos. Direção de Roy Ward Baker. Roteiro de Tudor Gates baseado na novela "Carmilla", de Joseph Sheridan Le Fanu. Música de Harry Robinson. Com Ingrid Pitt, Peter Cushing, Pippa Steele, Madeline Smith e outros. Disponível no Brasil em DVD pela revista Dark Side DVD, ano 1, nº 2).

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Cinebiografema I (Saudades de Jean Seberg)


Todo mundo namora
mesmo que o amor
dure só duas horas:
supérfluo
o uniforme do Superman
na fortaleza da Solidão.

Words By Lívia Soares
Photo: Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg em "Acossado", de Jean-Luc Godard