
Hoje eu acordei tão feliz que
pouco se me dava estar morta.
Respirei o silêncio da casa.
Todos partiram há muito tempo -
e não havia nisto qualquer dor.
Pelas frestas, entravam filetes de luz
vinda não sei de onde (sim, era
o sol - mas daquele sol que adentra,
às vezes, uma velha catedral).
Um zumbido ínfimo, espécie de
surdo ronronar, envolvia os ângulos todos,
as paredes lisas pintadas de claro,
em cores alegres (o que é uma cor alegre?)
para a nova família que aqui virá viver
e morrer. Agora, nessas paredes,
nem sombra da marca dos retratos
daqueles que eu amei. Em algum lugar,
eles se ocupam de suas vidas;
às vezes, gastam dois ou três minutos
tentando reaver os contornos do meu rosto -
tarefa que se tornará mais difícil a cada dia.
Não há nisto qualquer dor. Porque
eu sei que, sem querer, meu rosto
se desfez, se desfará em areia e vento,
para que dentro de suas almas
eu me precipite em flocos finos de memória -
até que eles me lembrem sem lembrar.
Então eu respirei fundo, arrepiando as telhas
(minha alma é tão maior que a casa!)
e num instante me vi em plena rua
(não precisava mais de portas nem janelas)
passando entre os passantes, em forma de aragem.
O dia estava lindo, as pessoas e as coisas
me comoviam, sem que eu soubesse por quê
(eu estava perto, tão perto de compreender!).
E já que estava passeando, sobrevoei
também o cemitério florido, inundado
pelo canto dos passarinhos, em sua azáfama
colorida. Vi meu nome entalhado numa lápide.
Ao seu redor, dúzias de rosas levemente fanadas.
E não houve nisto qualquer dor.
Eu também era uma pessoa muito ocupada.
Eu era, agora, íntima de um milagre -
e tinha a eternidade para cuidar.
Words By Lívia Soares
Photo by José Boldt