segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Dos "Cadernos de Poesia": Forget Me Not


Hoje eu acordei tão feliz que

pouco se me dava estar morta.

Respirei o silêncio da casa.

Todos partiram há muito tempo -

e não havia nisto qualquer dor.

Pelas frestas, entravam filetes de luz

vinda não sei de onde (sim, era

o sol - mas daquele sol que adentra,

às vezes, uma velha catedral).

Um zumbido ínfimo, espécie de

surdo ronronar, envolvia os ângulos todos,

as paredes lisas pintadas de claro,

em cores alegres (o que é uma cor alegre?)

para a nova família que aqui virá viver

e morrer. Agora, nessas paredes,

nem sombra da marca dos retratos

daqueles que eu amei. Em algum lugar,

eles se ocupam de suas vidas;

às vezes, gastam dois ou três minutos

tentando reaver os contornos do meu rosto -

tarefa que se tornará mais difícil a cada dia.

Não há nisto qualquer dor. Porque

eu sei que, sem querer, meu rosto

se desfez, se desfará em areia e vento,

para que dentro de suas almas

eu me precipite em flocos finos de memória -

até que eles me lembrem sem lembrar.

Então eu respirei fundo, arrepiando as telhas

(minha alma é tão maior que a casa!)

e num instante me vi em plena rua

(não precisava mais de portas nem janelas)

passando entre os passantes, em forma de aragem.

O dia estava lindo, as pessoas e as coisas

me comoviam, sem que eu soubesse por quê

(eu estava perto, tão perto de compreender!).

E já que estava passeando, sobrevoei

também o cemitério florido, inundado

pelo canto dos passarinhos, em sua azáfama

colorida. Vi meu nome entalhado numa lápide.

Ao seu redor, dúzias de rosas levemente fanadas.

E não houve nisto qualquer dor.

Eu também era uma pessoa muito ocupada.

Eu era, agora, íntima de um milagre -

e tinha a eternidade para cuidar.
Words By Lívia Soares
Photo by José Boldt

11 comentários:

Tania disse...

Serenamente nostálgico e belo. E nestes versos:

"eu sei que, sem querer, meu rosto
se desfez, se desfará em areia e vento,
para que dentro de suas almas
eu me precipite em flocos finos de memória -
até que eles me lembrem sem lembrar."

fiquei sem palavras e com os olhos úmidos...

Um abraço grande para você também, Lívia.

(e obrigada pela presença, sempre generosa)

Carlos Henrique Leiros disse...

Olá, minha cara;
Poucos poemas saíram-se assim tão belos quanto este, onde o mundo é observado sob um tênue véu. O personagem flutua por um universo que reconheceu como seu um dia, saudoso, melancólico.
Veio-me a mente certos dias enevoados, com pessoas surgindo e desaparecendo dentro da bruma, esquecidos e avivados na memória.
São belos versos para um poema bem inglês, ao qual presto reverência. Parece-me vindo de LÁ...
Você foi fundo!
Abraços do
Carlos

Tinta Azul disse...

Gostei bastante.
Um abraço

Sonja disse...

Fico a pensar no poder e delicadeza de certas palavras... Devaneio... Poesia...
Você sabe!!!
Obrigada por partilhar versos tão belos.
Beijos carinhosos,
Sonja

schadenfreude disse...

Peço desculpas, por invadir...Por ler e quase chorar.
É tão lindo, é tão triste, é tão verídico, é lúdico.
Perdoe me, me desfez...palavras e muralha.
Mais um dos lindos lugares que invadi.
Mas nessas palavras quase chorei, e entre olhos quase em dilúvio e pele em arrepio deixo e já desculpo me c um abraço, se é q meus braços alcançam um ser tão leve a flutuar.

devaneiosaovento disse...

Querida Lívia

Senti saudades dos seus versos,
em aqui estar. Desculpe-me pela ausência, pela minha falta,
estou de volta,coisas aqui mundanas.
Aproveito para agradecer seu carinho sempre, sua presença se faz necessária "lá" seja sempre bem vinda no meu "ninho" poético,não tão profundo qto ao seu,nem tão belo, nem tão carnal, nem tão sensível...
veja: "...o que é uma cor alegre?
não sei Lívia, nunca soube, e vc?conseguiu descobrir?
veja tb: "...minha alma e tão maior que a casa..."
a minha tb Lívia, a sinto maior que a casa, que as ruas, que a cidade... a sinto imensa, e isso não é bom, não tenho onde guardá-la, as vezes fica ao relento, e isso dói
sempre perto, próxima demais para compreender,
mas não consigo, acho que não fui dotada do conhecimento necessário para eesvendar as dores da alma.
-
abraços

Nena Dolores disse...

Lívia


Já estive aqui antes, não assinei o livro de visitas e com muito prazer eu volto, dessa vez para que saiba que gosto de seu olhar sobre as reentrâncias, as sensibilidades.

Obrigada pela visita
Bem vinda!

Beijo carinhoso

Anônimo disse...

Oi Lívia;
Já fui e voltei várias vezes nesse teclado, envolto por uma sensação de não conseguir adjetivar tão belas e entorpecentes palavras. É uma perfeição, um profundo bem que você faz aos que têm orgulho, como eu, de ser seu leitor e amigo.
Com muito carinho,
Fabiano.

Anônimo disse...

Que coisa mais linda, menina! Eu não sabia que você escrevia e muito menos assim. Sua poesia é crua, forte, mas flutua todo o tempo, envolvida em um lirismo e sensibilidade deliciosos. Lindo!

Cláudio.

Anônimo disse...

É uma ternura ter uma fotografia perto da tua Poesia.

um beijo e obrigado
zé boldt

Vieira Calado disse...

olá, bom dia!
Deixei um prémio para você no meu blog de poesia.
Cumprimentos.