segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Dos "Cadernos de Prosa": Notas Sobre um Jardim Selvagem (variação sobre um tema de Lygia Fagundes Telles)


1. Se falo agora sobre o jardim selvagem, é porque o perdi. Embora ainda exista a estrada que vai dar aos seus portões.

2. Aquele pomar de lábios e presságios, que violavas com longos dedos trêmulos de hera, tinha em seu centro um lago a dormir, enfeitiçado. Ou seria um pântano? E ao redor do espelho prateado, divindades marmóreas inclinavam ligeiramente as frontes, quando passavas.

3. Lá, o teu suor era tão sagrado quanto o orvalho. Tua saliva entreabria as pétalas mais renitentes. Usavas a névoa como um vestido, a umidade se imiscuindo na fina urdidura do tecido, colando-se às tuas formas de tal modo que ficavas pronta, oferecida como um fruto.

4. Deus deve ter rido muito das nossas pretensões sacrílegas: deu-nos permissão para delinqüir. O pecado vinha com o aval dos céus e uma coroa de algas, liquens e nenúfares. Nós éramos vagamente sagradas, dissolvidas no mormaço primevo dos desejos, no paraíso dos odores misturados e línguas que se bifurcavam. As palavras se partindo, silenciando quase; voltando a ser apenas um rumor. E ninguém para nos chamar de Fleurs du Mal. O mal ainda não fora inventado.

5. O sopro violento da paixão desmantelava os canteiros, desarranjava as pétalas, enchia de sombra as tardes mornas. Logo aprenderíamos a nos ferir. Os beijos se tornariam cruéis e impacientes. Na lividez arrebatadora das nossas espáduas, colos e seios, floresciam já os primeiros hematomas vampirescos. O lago tinha reflexos rubros doentios, as frutas amargavam na boca, os dias de luxo inimaginável começavam a cobrar seu preço em lágrimas. Para viver, nós dependíamos de um jardim selvagem.

6. Esvaziamos as taças com ânsia; atiramos as taças no chão com toda a força; dançamos sobre os cacos até nos tatuarmos como um vitral sangrento. E passaram-se anos.

7. Haverá alguma coisa no interior das palavras? Alguma conexão com aquilo que vivi? E se, durante o chá, algum sabor mais exótico despertar a tua audácia e perguntares polidamente pelo jardim?

8. O jardim selvagem se estende ao infinito.
Words by Lívia Soares
Drawing by Dante Gabriel Rossetti


9 comentários:

Carlos Henrique Leiros disse...

Mais um poema em prosa?
Este ficou particularmente belo, com imagens que lembram as evoluções de Blake em seus jardins de sonho.
As palavras também me fazem recordar dos nobres pre-rafaelitas, de Rossetti, de Burne-Jones, de Redon, Turner, Homer.
Aurélia e seu pescoço esticado; a donzela surpreendida pelo anjo em Boughereau; as duas figuras embuçadas de Caspar David Friedrich. Em suma, uma viagem pelas cenas retratadas por grandes artistas.
O desenho à pena, de autoria de Rossetti, põe ainda mais às claras esse ar de refinamento que seu belo texto carrega.
Forte abraço do
Carlos

devaneiosaovento disse...

Boa tarde Lívia
Adorei saber de vc,pois aqui vc se mostra, como se desse para sentir sua alma, mesmo pisando nesses cacos, que deixam marcas...

"(...)O pecado vinha com o aval dos céus e uma coroa de algas, liquens e nenúfares." achei de uma beleza encantadora!
abraços Lívia.

devaneiosaovento disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sonja disse...

Querida Lívia,

Que belo!!! Encontrar o sagrado no mais profundo doar... "Quando dou é por inteiro que me dou" já dizia Withman.
Que verdadeiro o quebrar de taças e a dança que faz sangrar pés e alma...
Ainda estou viajando ao sabor de uma "DIVINA" fanta, gelada e maravilhosa.
Parabéns pelo refinamento e beleza do texto.
Beijos de carinho e sempre mais admiração
Sonja

Carmen Vasconcelos disse...

Ah, Lívia, falta a publicação em livro. Coisas primorosas assim têm de ter muitas formas de serem conhecidas. A internet é um espaço ao mesmo tempo infinito e exíguo e, quiçá, inalcançável. Bem, livros também, mas...
É preciso publicar em livro. Dói. Mas é preciso.
Beijos

m disse...

pastel com caldo de cana, como não me lembrar?! querida, será que descontar na escrita as minhas ansias as faz menores, de fato?

m disse...

por que diabos nos faz necessário falar dos jardins que se perdem? por que o fazemos ao perder? sou anônima com as minhas dúvidas tão crueis e comuns.

mas conexão, querida, essa existe e nunca se perderá. cada gota de suor valerá por cada lágrima, e vice-versa.

sou péssima em comentários, perdoai-me.

beijos tantos!

Benó disse...

A sua escrita em prosa ou em verso é profunda, densa.
Um beijo e seja feliz!
Vou viver entre as flores e beijar o sol.

Tania disse...

Olá Lívia,

Você nos oferece uma leitura intensa, senti como se uma enorme tela se erguesse, desenhando esse jardim selvagem. Certamente, há muita força no interior das suas palavras.

Um abraço grande e, desde já, desejo-lhe um bom final de semana.